"Em vez de balas"
Biblioteca Municipal de Cascais
S. Domingos de Rana
16 Agosto a 7 Setembro 2019
17 fotografias da Guiné recolhidas em 1968/69
17 fotografias da Guiné recolhidas em 1968/69
Em vez de balas
No dia 1 de Maio de
1968, o Tenente largou do Tejo, rumo à Guiné, a bordo da fragata Corte Real.
Era então um jovem fuzileiro, de 22 anos, recém casado, que interrompera os
estudos de Economia na Universidade de Lisboa.
Em Bissau integrou a
6ª Companhia, aquartelada no INAB, junto ao Geba. A missão consistia
essencialmente na escolta de combóios de embarcações que abasteciam os quartéis
do Exército no interior do território.
Subiu e desceu os
principais rios da Guiné comandando as missões a partir das lanchas da Armada.
Navegou no Cacheu até Farim, no Mansoa, no Geba e no Rio Grande de Buba. Ligou
por mar a foz desses grandes rios e também foi a Catió, a Bolama e aos Bijagós.
A guerra era uma
realidade penosa para quem como ele, jovem militante comunista, se opunha ao
domínio colonial e defendia a independência das colónias. Partilhou esse drama
pessoal com a sua mulher, que trabalhou como professora de História no então Liceu
Honório Barreto.
A fotografia
constituiu um paliativo. Ao fotografar a dignidade do povo guineense, a beleza
das suas mulheres, o porte dos seus homens e o encanto das suas crianças, ele
tinha a impressão de estar a fazer um gesto de amizade no contexto da guerra.
Tal como muitos outros jovens da sua geração aprendeu, "no terreno",
a grande lição da relatividade da nossa própria cultura.
O Tenente voltou a Bissau em 2018, cinquenta anos
depois, para mostrar as fotografias feitas nos anos da guerra. Desembarcou do
avião com uma mala de viagem repleta de ampliações. Felupes com os seu
cachimbos, balantas em trajes de fanado, mandingas com as suas longas vestes. Rostos, corpos e gestos impressos a preto e
branco. O Tenente convivera com eles durante cinquenta anos, em Lisboa, através
daquelas fotografias. Esse convívio fotográfico mantivera uma forte ligação afectiva
à Guiné que, apesar disso, durante todo esse tempo, não voltara a visitar.
Quase não fotografou a guerra e os aparatos
militares.
Dedicava-se a registar as gentes da tabanca, dos
campos do arroz, os pescadores, e a garotada negra.
No contexto da guerra estas eram coisas preciosas, que
corriam perigo, mas que um disparo da câmara fotográfica dava a ilusão de resgatar
para sempre.
Quem lhe haveria de dizer que, 50 anos depois,
regressaria a Bissau com dezenas dessas fotografias para pendurar na parede e
mostrar a quem as quizesse ver. Não o feito artístico, que diziam que também lá
estava, mas o milagre daquele gesto de resgate que se substituíra ao tiroteio. Fotografias
em vez de balas.
No dia da inauguração, no Centro Cultural Português, em
Bissau, apareceu muita gente para ver as fotografias. Quase todos jovens
estudantes, provavelmente na idade que o Tenente tinha quando chegara a Bissau
para lutar na guerra.
Eram alegres e ruidosos, desinibidos, interpelavam o
Tenente sobre isto e aquilo. Houve um que até lhe perguntou se ainda era
comunista, como constava da folha de sala.
O Tenente deliciou-se com aquelas conversas, sem se
deixar perturbar por saber que nunca lhes conseguiria transmitir a complexidade
dos seus próprios sentimentos.
A fotografia, para o Tenente, ficaria definitivamente
marcada por aquele momento inicial na Guiné. A fotografia como forma de viver,
ou de sobreviver. Afirmação íntima contra a inevitabilidade do tempo e contra as
inevitabilidades de cada tempo.
A fotografia não mais o abandonou. E aos setenta anos,
como aos vinte, continua a desempenhar o seu papel de argamassa interior,
lingando os tijolos da memória.
(Extractos
do livro "Crónicas de um Tenente, Guiné-Bissau 1968-2018")
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